segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Dissolução

Desde aquele dia
em que nos demos as mãos,
em que você sorria,
que afastamos todos os nãos,
tenho sempre seu sorriso comigo
e viva na alma a sensação
que você é mais que amigo,
que é uma bênção, uma unção.

E venho aprendendo neste tempo
que tudo que é concreto
se dissolve no vento.
Que tudo é uma escolha
sem errado, sem certo,
como as duas faces de uma só folha.

Os ensinamentos que me dá
coleciono como diamantes
de valor inestimável.
E admiro tudo o que há
em seu coração de alegrias pulsantes
e de descobertas insaciável.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Entoando

Lá vem o vento bem ligeiro
Vem trazendo o verão
Abrem as rosas, passa o frio
Vem o cheiro da estação

Acorda o dia bem faceiro
E ilumina a plantação
Olha pro céu que lá de longe
Vem se abrindo num clarão

E no terreiro as crianças
Vão cantando seu refrão
Entoam juntas a alegria
Que espalho na canção

*cantiga feita para a melodia composta por fabrício

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O encontro

Despertou momentos antes de o despertador anunciar a aurora. Quem precisa de tal lembrete quando se tem no peito um coração que bate em descompasso tentando acertar em si a passagem das horas? Longas horas opacas que pareciam já não passar. Levantou-se bem leve dos lençóis de linho que protegeram durante a noite os doces e tensos sonhos com o amado, calçou os chinelos e pôs-se em marcha para o lavabo, onde borrifaria nas curvas de seu corpo ainda jovem o viço do aroma das flores do campo. Aquele seria o dia. Indubitavelmente, aquele seria o dia em que ouviria verter da boca de seu amado as palavras de amor com que tanto sonhara. O dia em que vestiria o olhar mais apaixonado, o sorriso mais tenro e se agasalharia com o abraço mais cálido para acalentar o amado. O amado e as esvoaçantes palavras de amor que gotejariam de sua boca como mel de cana-caiana.

Desceu a escada que unia em caracol seus aposentos ao refeitório para saborear o desjejum. Tudo quanto estava posto à mesa trazia-lhe a memória do amado; seus olhos azuis eram claros e límpidos como a água que bebia, os pães levemente tostados assemelhavam-se ao pálido perfumado de sua pele, a geléia tinha consigo o rubro e o açucarado de seus lábios e o guardanapo de tecido o leve toque de suas mãos... Ah, suas mãos! Bastava pensar em sua delineada forma para que os pêlos de seu corpo se eriçassem como a relva ao sopro de uma fagueira brisa matinal. Aquele seria o dia. O dia em que seu amado maestralmente a tocaria e segredaria em quase sinfonia o amor que tinha por si; e ela ouviria os musicais versos através de cada poro seu, compondo, assim, a platéia necessária atenta ao concerto do amado.

Saciado o corpo, pôs-se a colher as mais belas flores do jardim. Queria-as variadas e multicrômicas a trazer a lascívia primaveril para dentro de seu quarto. Cores, formas e odores que, ao cair da noite o véu, testemunhariam caladas a plenitude em que se encontraria sua alma, farta com as leves e aladas palavras do amado. Subiu ao lavabo e pôs-se a encher a banheira com água quente e sais minerais em um ritual puro quase místico. Precisava batizar-se, expurgar de sua carne os pecados do pensamento e preparar-se para um novo existir. Renasceria de seu imo uma mulher formosa cujo coração ritmar-se-ia com a marcação de outro, o qual não deixaria que se esquecesse jamais do compasso.

Passadas as horas matutinas, recheadas pela suaviloqüência de brandos pensamentos, acercava-se o meio-dia e deveria, pois, estar em forma para o convescote. Adornou-se com os tecidos mais belos e puros de seu armário, os quais anunciariam ao olhar do amado a sua chegada e toda a sua disposição em ser-lhe a mais bela, a mais virgem, a mais sua. Tomou a carruagem que lhe esperava e singrou por caminhos irisados de flora campestre até a beira-mar. Deixada ali por seu servo, quedou-se a esperar pela tão sonhada chegada de seu príncipe encantado, aquele que a tiraria do mais profundo sono e lhe amaria com ardor e ternura.

Sentada à uma banqueta, sombrinha em punho a fazer-lhe sombra à alva face, pôs-se a observar o vai-e-vem das pessoas. Procurava reconhecer entre os rostos que transitavam aquele que espelharia, aquele que a faria sentir-se mais ela. Em vão. Distraída, passou a acompanhar o bailar das gaivotas que se embebiam das rajadas de vento quente e desenhavam espirais no ar. O mar, suave em seus movimentos, brindava à areia com espuma e música, enquanto esta a tragava e apreciava. O baloiçar das árvores dava à cena o movimento preciso. Tudo parecia estar ordenado como em uma perfeita orquestra. Tudo parecia estar pleno de si e em conformidade com seu papel na composição daquele ato tão simples e divino.

Não se deu conta da passagem das horas. O sol baixou-se por entre os glaucos montes e, cheia de vida, recolheu seus pertences e regressou à casa. Nada mais se fazia necessário. Amava-se e isso a bastava.

domingo, 8 de novembro de 2009

Amassar o pão

Estavam sobre a mesa o trigo, o leite, o óleo, o sal e o fermento. Todos em suas exatas medidas. Estavam ali eles. Inexatos em suas medidas. Começaram por misturar o que era leve, o que era pó. Homogeneizado, partiram ávidos para o que era líquido. Dava a liga. Umedecia e transformava. Humores. Agora era o trabalho das mãos e do suor. Amassar o pão, deixá-lo no ponto. Misturar bem para realçar o sabor final. Alimentar o corpo e a alma.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Desprobabilidades

Para cada tentativa, uma chance de erro e uma chance de acerto. Para cada erro, uma chance de aprendizado e, consequentemente, de acerto. Para cada tentativa, uma chance de erro e duas chances de acerto.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Simples desejo

Habitavam o mesmo ipê que margeava aquele caminho por entre as montanhas. Apesar de haver por ali várias outras árvores de diferentes cores, aquele com flores amarelas, logo após a curva, era o preferido dos dois. Gostavam, cada um, de se abrigar entre as pétalas tonalizadas.

Bastava o sol se pôr e o céu tornar-se de um azul viscoso, iniciavam sua tarefa de pequenos insetos. Não se sabe se por instinto ou por saudade do brilho solar, acendiam e apagavam seus corpos num ritmo somente entendido pela natureza que os havia criado. Em verdade, não percebiam que dessa forma faziam daquela estrada uma extensão da abóbada celeste com suas estrelas cintilantes.

Numa noite chuvosa de primavera, os dois vagalumes preferiram não se arriscar afora e, protegidos entre as pétalas, emitiram bem forte suas luzes, na esperança de que alguém os visse. Surpresa foi quando se deram conta de que cada um admirava a luz amarela vinda da flor vizinha. Trocaram timidos olhares. Foi inevitável, se apaixonaram.

Daquele dia em diante, saíam juntos todas as noites acendendo e apagando seus corpinhos numa sinfonia de luz para os olhos. Cortejavam-se e descobriam novas flores, novas formas de brilharem. O sentimento que os unia era tão grande que um belo dia pediram ao sol que os transformasse em estrelas. Queriam, assim como elas, iluminar o céu noturno com seu amor.

O Sol, então, lhes disse: "Meus pequenos amigos, ser uma estrela é um dom divino. Uma tarefa que desempenho com muito júbilo. Com meus raios, trago luz e alegria à essa terra em que vivem. Com meu calor, aqueço o ar e a água. Dou vida às plantas e a todos os animais. Porém, com isso, sempre um pouco de minha vida se esvai. Sei que este é o meu trabalho, contudo, ninguém pode me olhar".

Os vagalumes, que prestavam bastante atenção àquela lição, contestaram: "Veja, amigo Sol, que não estás sozinho. Tens tua companheira, a Lua, que te segue e te reflete. Sem ti, ela não poderia inspirar poetas e músicos, enamorados e navegantes. Ao contemplarmos sua argentina beleza, estamos contemplando o amor que tens por toda a criação. Tranforma-nos em estrelas, te rogamos".

A Lua, que observava calada a essa tertúlia, sentiu-se tocada com o puro desejo daqueles dois dimunutos insetos. Conhecedora que era do mundo e das marés, mãe de todas as forças, senhora do silêncio e das paixões, lançou seu olhar ao Sol e lhe pediu que os ajudasse. Diante de tamanha expressão, o Sol não pôde se negar e lhes transformou em humanos.

Ao se virem assim, de mãos e pés, cabeça e coração, se abraçaram com força, se olharam e se admiraram. Ainda não eram estrelas, mas bastava abrir bem as pernas e esticar os braços para se tornarem uma. E seus caminhos, agora juntos, foi de muita luz.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Enviado

O post que aqui estaria foi enviado por carta ao seu destinatário.

domingo, 13 de setembro de 2009

Soquerer

Só eu te quero
Eu só te quero
Eu te só quero
Eu te quero

sábado, 29 de agosto de 2009

Abra-te

Podia-se dizer que era um privilegiado: seu armário tinha quatro portas. Por quatro portas entenda-se grandes portas. E, por cada porta, entenda-se um mistério. Eram quatro seus mistérios.

Não havia percebido tal coincidência, mas o simples observar que as portas de seu armário continham cada uma seu possível segredo despertou-o para esse fato. O que atrás de cada uma se escondia? Fechasse o olho, saberia onde cada peça de roupa estava guardada. Mas será que cerradas as portas elas não se misturavam? Será que a ordem imposta por ele era do agrado de seus pertences?

E se abrisse agora, agora mesmo, a porta da direita? Veria suas gravatas em ordem de cor? Talvez bastasse pousar a mão no puxador e elas rapidamente se organizassem da forma que lhe aprouvia. Percebeu, então, que sua maneira de classificar e organizar tudo que existia era algo muito de seu. Refletiu e concluiu, com certo teor de dúvida, que sua forma era diferente das outras, que também eram diferentes entre si.

Pois que, em se tratando de pensamentos, poderia também imaginar-se abrindo todas as portas e observando a vida de cada uma delas. Ainda que tomado por um certo medo, resolveu começar pela esquerda. Surpreso ficou ao ver um outro mundo se descortinar aos olhos da mente. Quantos espaços não descobertos sempre estiveram ali, bem no seu armário! Quantos vãos não aproveitados! Curioso seguiu para a segunda porta. Essa, por sua vez, já nem tinha mais as prateleiras e o fundo parecia abrir-se a um infinito qualquer. Correu para a terceira, para a quarta! Era sem fim! Quantas possibilidades!

Abriu os olhos. Fatalidade. Suas portas continuavam ali, fechadas, e guardando cada uma seu mistério.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Feitio de oração

Pai nosso que corre em nossas veias
Iluminai nossas cabeças
Apartai o medo de nossos corações
Tornai-nos merecedores de Vosso reino
E confiai-nos Vosso amor.
Ajudai-nos a alimentarmos do pão nosso
E perdoai nossos erros de cada dia
Pois uma vez perdoados
Aqueles que nos ofendem já o estarão.
Guardai nossos pensamentos do mal.
Pai nosso.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Ladainha

Meu bálsamo, meu pensamento
Meu sangue, meu ar
Meu pão, meu lar
Meu norte, meu ungüento

Meu trabalho, meu contento
Meu chão, meu acaso
Meu descanso, meu ocaso
Meu tempo, meu sentimento

Meu suor, meu sagrado
Meu pulso, meu pedido
Meu santo, meu querido
Meu sono, meu amado

Minha luz, minha alegria
Minha soberba, minha sensatez
Minha sorte, minha desfaçatez
Minha loucura, minha fantasia

Minha sede, minha saliva
Minha sorte, minha saúde
Minha dor, minha atitude
Minha força, minha expectativa

Minha carícia, minha fascinação
Minha paz, minha metade
Minha esperança, minha vontade
Minha coragem, minha salvação

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Universos paralelos

, e no encontro de seus olhares se fez aquela dimensão inominável. O abismo revelado por suas pupilas replicava dentro de cada o vazio do universo. O coração acelerado anunciava o big bang. O sangue corria solto pelas veias e nutria suas esferas com aquela sensação nunca antes experimentada. Neste grave momento, obedientes às leis físicas, as massas de seus corpos entraram em suave órbita. E o espaço tempo entre eles passou a ser medidos em anos-luz...

terça-feira, 28 de julho de 2009

Acalanto

Faz de conta que me conta
Acalantos que não são ilusão
Bem-fazer que aquece
Rapidamente o coração.
Isto que me apresentas
Certo como só o nada pode ser
Inteiro, completo, sem ausências,
O mais puro sentimento que posso ter.

domingo, 19 de julho de 2009

Desvairio ao tempo

Sim, és um senhor tão bonito,
mas não como a cara dos meus possíveis filhos.
Ainda assim te farei um pedido,
tempo tempo tempo tempo;
que me deixes sair
um instante sequer
para fora do teu círculo,
para que eu possa ser para sempre,
enquanto dure.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Caderno de colorir

Meu amor por ti tem vários matizes. Há momentos em que ele é vermelho, naquelas horas que o corpo esquenta e o sangue ferve. Em outros ele é verde, quando me vem uma forte esperança de que estaremos sempre juntos. Logo mais ele se torna azul e sento-me ao teu lado para conversarmos sobre as notícias da TV. Depois, quando me dizes doces palavras, ele se veste de amarelo, me ilumina e purifica. Rosa ele é quando sinto-me feliz de estar ao teu lado e de acompanhar teus passos. Há momentos em que ele é lilás e meu amor por ti toma uma forma quase devocional. E, finalmente, há momentos em que ele é de várias cores em tons pastéis, quando eu, como uma criança, fico encantado, curioso, ávido e quero encher com tuas cores as páginas ainda brancas da minha vida. Nesse momento, amar-te é como uma doce brincadeira.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Poema de amor rasgado

Antes de chegares, meu amor,
vestirei meu melhor sorriso,
despirei meu cansaço,
abrirei os braços e rasgarei o peito
para que quando me envolvas
no seu abraço
meu coração possa escutar
diretamente do seu
as palavras que nossas bocas
não sabem dizer.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Me dê a mão

Minha mão só pode ser firme porque tem a sua para segurar. Se não a tivesse, seria apenas uma mão - fosse solitária, fosse abanando, seria apenas uma mão. Quando nos damos as mãos temos cada um a firmeza da mão do outro, firmeza essa que não é sua, nem é minha. Ela é a firmeza do encontro de nossas mãos.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Seguindo teus passos

Caminhava pela rua hoje de manhã
Acompanhado de meus pensamentos
Quando de súbito percebi
Que se estivesses também caminhando
Pela rua que apoia teus passos
Estaríamos caminhando juntos
Não haveria nem muro nem parede
Que nos separasse.
Bastaria então esticar os braços
e fechar os olhos
para tocar-te suavemente.
Porque nada nos separa.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Excertos: A Alma Imoral

"O que é certo é certo e o que é errado é errado. E quando o que é o certo é o errado e quando o que é o errado é o certo? Entender um conceito pelo seu oposto é difícil, mas entender um conceito pelo seu oposto é fotografar a alma."

"A evolução da espécie está no silêncio do pai que ergue a faca para matar um filho por ordem divina e a detém. Um silêncio que cada homem e cada mulher conhece em sua vida pessoal e coletiva. Um silêncio desafiador, que responde a um impulso interno de sagrada desobediência, uma desobediência que o homem sonha em integrar à paz, à paz que não se fará no estabelecimento de um mundo ideal para um corpo imutável, não se fará através do clone, mas através do mutante, porque o nosso ser é um ser em transformação, tem alma e não é uma alma boazinha como nos fizeram acreditar, mas uma alma profundamente imoral e isso não tem nada de satânico. É que transformaram Satã num espantalho que nos afasta das mudanças. Satã é tudo aquilo que nos embota os sentidos e que nos embota a consciência - é que é mais fácil e conveniente apresentar Satã como um possível resultado do risco do que o apresentar também como o pesadelo da acomodação. Se os que mudam radicalmente de emprego, se os que refazem relações amorosas, se os que perdem medos, se os que rompem, se os que traem, se os que abandonam os vícios experimentam a solidão é possível que essa solidão seja quebrada no encontro com outros que conheçam essas experiências. Haverá pior solidão do que a ausência de si?"

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Significado

Penso ser de muito significado o dia após a noite mais longa do ano.

.
.
.

sem quaisquer privilégios pessoais

quarta-feira, 17 de junho de 2009

No seu lugar pra ver você chegar

A porta estava destrancada. Não sabia como havia parado ali. Talvez tivesse ouvido um telefone chamar à distância ou então visto alguém assomar à janela do andar superior. Pensando bem, não. Nem fora o ipê carregado de flores amarelas no quintal, nem o balanço que se movia com o vento que o havia chamado. A porta estava destrancada e aquilo lhe parecia um convite. Torceu a maçaneta e sentiu a ráfaga de ar que saiu pela fresta preencher-lhe o corpo, trazendo consigo o cheiro característico da casa. Pôde perceber o perfume de algumas iguarias, duas taças postas ao chão próximas à lareira, uma garrafa de vinho por sobre a mesa de centro. Chamou por alguém. Debalde. A casa estava vazia, parecia-lhe que à noite houvera um jantar. Instintivamente foi em busca de brasas, as quais encontrou, em seu lugar, o carvão cinza e seco. Tampouco as taças exibiam marcas de lábios ávidos ou vestígios carmesinos de uvas. Sensações úmidas vinham da cozinha e, fechando os olhos, poderia imaginar que estava à beira-mar em algum ponto da costa sul da Itália com seu típico cheiro agridoce vindo de terras africanas. Subindo as escadas lentamente, como que para não ser percebido, adentrou o aposento iluminado, com voais nas janelas e tsurus que baloiçavam ao sabor da brisa. A cama desarrumada emitia maviosos cantos de prazer e sono aos quais Ulisses não resistiu. Descalçou-se, sentou-se à beira da cabeceira e sentiu a maciez do colchão. Tirou as meias, pousou o relógio no criado-mudo, desnudou-se. O linho dos lençóis envolvia-o com suavidade, revelando-lhe áreas e pequenos prazeres até então não descobertos. Virou-se de lado, de bruços e finalmente para cima. Deixou-lhe pesar a carne, deixou-se sentir homem, completo e cansado. Era bom estar assim, nu e só neste ambiente tão não seu. Estava ali em essência, tinha consigo o que lhe era genuíno, nada além de suas próprias vontades, de sua própria história e de seu corpo. Não sabe quanto tempo ali ficou, se menos de hora, se hora-e-meia. Levantou-se e, como num rito de batismo, abriu o duche e deixou-se-lhe escorrer a água por todos os poros, lavando-o de sua sina de humano. Largando molhado o piso por trás de si, regressou ao quarto ainda a tempo de ver a marca de seu corpo que se desfazia na cama. Não queria mais aquelas suas estranhas roupas amontoadas em um canto. Passou de largo pela bergère e parou em frente a uma gaveta semi-aberta na cômoda que restava naquele canto do quarto. Abriu-a e serviu-se com uma roupa de baixo, limpa e branca, discreta, assim como ele se esforçava em ser. No andar de baixo, vindo do pequeno corredor, de súbito ouviu um leve ruído. Rapidamente tentou se esconder, alcançar algo com que pudesse se cobrir. Alguém havia chegado? O que diria ao vê-lo assim, tão seu, tão limpo, tão despertencente? Esgueirou-se abaixo pelas escadas e, buscando algum movimento pela sala, foi repentinamente arrebatado pelo cheiro de comida que vinha do coração da casa, da cozinha. Levado até lá por aquele doce Siroco, avançou lentamente em direção à mesa onde pratos e panelas vaporizavam o ar. Por detrás de si viu surgir-lhe o vulto de uma pessoa, que, dando a volta por sua frente, puxou-lhe um banco e fez-lhe o gesto para que se sentasse e estivesse à vontade. A refeição foi servida e nenhuma palavra foi dita. Não se estranharam nem se fizeram perguntas. Afinal, a porta esteve sempre aberta.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Se tu soubesses

Dos momentos que estivemos juntos só me restam as memórias. De teus olhos no escuro, teu hálito fresco pelas manhãs, teu abraço quente, teu afago maternal. Contudo não sabes, querida, não sabes dos sonhos que te criei. Não imaginas meu sorriso ao te ver chegar, não concebes meu dançar quando teu corpo me tocasse, não sentes a leveza de meus gestos para que tanto querer não te assuste. Tu nunca saberás das tardes de sol, das noites de frio e do vinho derramado no lençol, porque tu não sabes de mim.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Querida Manu,

Hoje desencadeou-se em mim um processo de destruição (ou seria lapidação?) de mim. Ontem abri meus planos para minha mãe, meu maior ponto fraco. Disse a ela tudo, tudo mesmo, Manu. Tudo o que se passou pela minha cabeça nesse último mês. Contei-lhe da vontade de me mudar para Buenos Aires e dos benefícios que essa mudança me traria. Contei-lhe de todos os medos que me paralizam. Ela me olhou atentamente em todos os momentos, perguntou se era isso mesmo que eu queria, e disse, com certo rancor na voz, que era para eu ir logo e tirar isso de cabeça.

Hoje percebi o que se passou naquele momento. Quando conversei com ela, Manu, não estava pedindo permissão para ir ou comunicando uma decisão, eu estava pedindo acolhimento, estava pedindo era para ficar. E ela não me impediu, Manu. Ela não estendeu seus acolhedores braços em atenção ao meu pedido e em socorro à minha alma. Ela não me deu o colo que pedi. E nesse gesto, ela cumpriu com a fatalidade de seu papel de mãe. Senti que seus braços se me escapavam, assim como quando a fonte do seio se seca e não há mais leite para alimentar a criança.

Manu, nesse momento ela me botou no mundo como que dizendo "ainda que me doa, agora é com você". Senti-me sozinho e isso é amor, Manu. Não é o amor que pedi, não é o amor que eu queria. Tive o sábio amor materno que sabe do que precisa sua cria. Esse amor que cega o medo, ainda que eu ainda não esteja pronto para recebê-lo.

Sim, Manu, o amor liberta. Tirei um mundo das costas para ganhar a vazia imensidão do mundo. Estou assustado, mas com mais certeza do chão que piso... desse mesmo chão que a mim não me foge.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Vacilamento

Bem mal o sol havia se posto por trás dos montes, entrou no ônibus que o levaria em sua viagem de volta para casa. Largando de si os belos horizontes, abria espaço para a melancolia. Sentado naquela estreita poltrona, nada mais podia fazer a não ser contemplar as primeiras estrelas que surgiam no firmamento. Foi então que testemunhou que o céu, vacilante como ele, girava mais rápido com as curvas da estrada.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

W intrometido!

domingo, 17 de maio de 2009

Oito e meio

Se pudesse afixar um adjetivo à testa, escolheria introspectiva, mas as pessoas a viam como melancólica. Era do tipo cabisbaixa, andava pelas ruas a perscrutar o chão e a contar bocas-de-lobo. Havia 17 delas no caminho entre sua casa e a escola, além de algumas tampas da companhia telefônica que ostentavam sua fabricação em 1896. Esse costume acabou por dar-lhe uma curva a mais e a render-lhe alguns centavos que, de tempos em tempos, achava pelos cantos. Sua riqueza não ultrapassava algumas patacas, afinal, não era dada a grandes riquezas.

O que vividamente procurava e sem muito sucesso encontrava eram pequenas sensações. Ver um passarinho agitar uma poça de água após a chuva, testemunhar o desabrochar de um botão de rosa, sentir o frescor do roçar da gota de orvalho na folha espalmada, acompanhar a evolução do ponteiro dos minutos, todas essas já havia experimentado. Debalde. Eram tão pequenas que se tornavam intangíveis, incapturáveis, fugidias, efêmeras.

Um dia estava a caminho da escola e, entre a oitava e nona boca-de-lobo, viu um saco de pipocas lançado ao chão. Parou, examinou-o fixamente e viu que as manchas de gordura deixavam transparecer algo. Olhou para os lados, abaixou-se, tomou o pacotinho em suas mãos, abriu-o e olhou-o dentro. O vazio que via era tão grande que pareceu-lhe a imensidão do universo. Mais uma pequena sensação se ajuntava às outras de sua coleção.

No ímpeto de dar àquele universo vazio e infinito sua primeira explosão, ventilou os pulmões de ar, assoprou firmemente e comprimiu-o contra a palma da mão. Foi quanto viu expandir em raios cósmicos, bem à sua frente, a felicidade.

domingo, 3 de maio de 2009

Os equilibristas e suas esperanças

"A esperança de não cair é o último medo do equilibrista, quando deveria ter sido o único?"

Fabrício Valente

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Fatalidade

"Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa individualidade, cheegar a ser Deus quer dizer: ter dilatado a alma de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo."1

Lex diz: Sabe o que me chama muito a atenção nesse trecho? A "anulação da dolorosa individualidade". A gente passa a vida inteira nessa atitude pequeno burguesa da propriedade: isso é meu, isso é seu, e o que é minha possa passa a ser determinante de minha personalidade. Mas, vem cá, quando você nasceu, o que você tinha?

Fabrício diz: Mais verdade do que a verdade contida. Nasceu vivo e nada tinha.

Lex diz: E quando morrermos, o que teremos?

Fabrício diz: Menos do que quando nascemos. Pelo menos uma vida inteira a menos pela frente.

1: Hermann Hesse in O lobo da estepe

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Meu canto, marinheiro, ouvi

Se a voz do mar
foi a que deu coro
à inquietação lusitana,
hoje são vozes d'África
que atormentam meu inquieto coração.

Se o maracatu como sagrado oráculo
anuncia o destino,
não serei eu a blasfemar,
a me ajoelhar
e pedir-te para ficar.

Se navegar é preciso,
É preciso viver, não é?
Preciso.
E se o cabo é de boa esperança,
Sim, eu te espero.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Voulez-vous poser une quéstion?

Pensei que depois de ponderar muito a respeito do mundo e das relações humanas conseguisse resumir as questões da vida em algumas poucas. Consegui.

- De onde vim?

- O que faço aqui?

- Para onde vou?

E isso não é reconfortante nem aumenta o desapego. Ao final a sensação é de estar no meio do túnel sem enxergar a luz de seu fim para onde quer que olhe.

Lembro-me de minhas sensações claustrofóbicas.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Pai e filho

Você é meu pai, eu sou seu filho.
Somos amigos.

Você me observa, eu não te entendo.
Você me diz, eu não te ouço.
Você se cala, eu não te quero.
Você é meu pai, eu sou seu filho.
Eu não te entendo, você tenta.
Eu não te ouço, você me mostra.
Eu não te quero, você me ama.
Somos amigos.

Você diz, eu pondero.
Você mostra, eu vejo.
Você aceita, eu tolero.
Você inabalável, eu ruína.
Você é meu pai, eu sou seu filho.
Somos.

E assim sangue, impulso,
carne, vida,
nos reconstruímos.
Timidamente nos damos as mãos.
Você me abraça, eu te abraço.
Você me olha, eu te olho.
Você me quer, eu te amo.

Somos amigos.

Despojos e espólios

O despertador do celular toca. Eram 8h20. Ufa! Hoje é domingo e não precisava se levantar tão cedo assim. Vira para o lado com a certeza de que só acordaria quando seus olhos insistissem em abrir.

Dito e feito. Passadas algumas horas, a coluna, que já não tinha a elasticidade de antes, implorava por um pouco de movimento, sem contar a sede e a bexiga cheia, resultado da noite de exageiros alcoólicos. Levantou-se e se dirigiu à cozinha para tomar seu desjejum e preparar o almoço: lasanha de berinjela e abobrinha ao molho béchamel.

Falando assim, parecia até difícil, mas não. Para o molho bastava manteiga, farinha, leite, tudo na medida certa. O resto era fácil, bem fácil. Só não podia parar de mexer... não podia parar de mexer, fosse a panela, fosse a coluna. Mal esperava que enquanto colocasse uma camada sobre outra de recheio percebesse que dentro de si o movimento era inverso: deitava fora as camadas de sedimentos depositados ao longo dos anos em busca de... quê?

A topada com as ruínas soterradas foi inevitável. O primeiro objeto encontrado foi uma calculadora Olivetti que usava para brincar de Banco e de Loja de Brinquedos. Junto à calculadora os papéis de escritório: notas promissórias, fichas de inscrição, vales, recibos, cheques inutilizados, tudo que era burocrático para os adultos era ciranda para o menino. Desde já demonstrava aptidão para as tarefas administrativas! Seguindo o rastro da fita impressa com contas de mentirinha tão importantes, chegou aos jogos sobre cujos tabuleiros passara meses de férias a se entreter. Já achei! Gritava para o pai quando conseguia localizar no mosaico de figuras aquelas que tinha separadamente na mão. Ou então exibia orgulhoso seu Super Trunfo quando a partida o estava apertando.

Seguindo as ruas do Banco Imobiliário e as casas do Jogo da Vida, caminhava para a mais tenra infância em direção ao seu companheiro de aventuras, que não era o Toddynho e sim o urso de pelúcia que carregava consigo para todos os lugares. Olharam-se, não quiseram nem contiveram as manifestações de saudade e abraçaram-se perplexos. Ambos com a mesma idade: ele tão homem, o urso tão gasto. "Não me esqueça num canto qualquer" - ouviu sairem da boca de Pingo os versos da cantiga de Toquinho. Sentiu-se culpado. Pingo lhe sorriu. Não lhe culpava. Era como acontecia nesse globo imerso no tempo-espaço. Enquanto aquele passa, este se preenche com memórias e mais memórias, das quais algumas se empoleiram sobre outras matando-as. E ele, Pingo, estava fadado ao esquecimento, à substituição, ao soterramento por outros companheiros, outras aventuras, outras emoções.

Como no Teatro Mágico, Pingo abriu-lhe as portas e deixou-o à vontade."Só para loucos", murmurou-lhe ao pé do ouvido.

Naquele momento carrinhos match-box cruzaram por sua frente num grande estampido. Sua Ferrari F40 de controle remoto irrompeu num estardalhaço e estacionou bem em sua frente, convidando-o para uma volta pelos circuitos do Pense Bem. Partiram, em seguida, para as notas musicais de seu primeiro teclado eletrônico e ali o deixou a ouvir as músicas que um dia soubera tocar. Mas, espere! Essa música não vinha da eletrola posta sobre a prateleira da estante? Não era a voz de Harry Belafonte? E esses braços não eram de seu pai que o pegava para deitá-lo ao seu lado no sofá marrom-café da sala? E ali estava Pingo, a observar tudo, sempre do mesmo jeito, com o mesmo olhar de plástico com o qual olhara o menino em seu primeiro Dia das Crianças.

Mergulhado na vertigem daqueles olhos cor de mel, o menino começou a escutar o toque das ligações no celular. Em verdade era o Jogo da Vida que o chamava para o dinheiro ganho no que antes eram apenas nomes do Banco Imobiliário e para a sorte lançada na roleta das obrigações sociais. Era hora de se despedirem. Cada qual de volta ao seu mundo. Um ao da fantasia, onde não se perde nem se ganha; o outro em direção ao futuro.

Talvez não fosse tão fácil quanto montar uma lasanha, ou como escavar ruínas. Isso ainda iria descobrir. A verdade é que ele estava ali: o menino havia-se feito


HOMEM



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domingo, 1 de março de 2009

Onde estava borboleta, que queria ser bruxa perdida entre os elos da vida esperando que outras pétalas também fossem borboletas, ou ao menos esperando que suas asas fossem pétalas para poder se encontrar em um jardim?

Pobre borboleta que não percebia que as pétalas, loucas para voar, só eram capazes de o realizar depois de falecidas.

Alan

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Economia na cozinha

Ainda que os efeitos da crise não tenham afetado a todos, e esperamos que não afete, é chegada a hora de refletir a respeito desta tão falada fase econômica.

Desde a segunda quinzena de outubro, quando se desvelou o desaquecimento da economia estadunidense e européia, uma onda de pânico veio logo em seguida, levando consigo lucros, empregos e perspectivas de crescimento. Da noite para o dia começaram as demissões em massa e as reavaliações de preços de ações e dos cenários estratégicos.

Penso que seja o momento de questionarmos onde foi parar os anos e mais anos de lucros acumulados. Não é um tanto quanto incoerente que os anúncios de grandes faturamentos virem pó em tão pouco tempo? O que foi feito com esse excedente financeiro vindo do nosso trabalho? Afinal, se não fossem os empregados ora demitidos, não haveria produção e, por conseguinte, lucro a ser declarado.

Em recentes matérias veiculadas nos jornais, vimos que o tópico principal da pauta de reunião em Davos foi refletir sobre os motivos que levaram a tal crise e onde estava o erro dos governos por não terem "visto" nem feito nada por isso. Cabe lembrar que, pela corrente liberalista, o mercado, para que funcione segundo suas leis, não deve sofrer intervenções governamentais, a fim de que seja dada a auto-regulação através da demanda e da oferta. No entanto, o que vemos? Empresas com ações desvalorizadas pedindo ao governo – entidade até então não-interventora – que aja sobre a economia através de pacotes econômicos.

Neste momento, sintetizando o que foi anteriormente dito, deveríamos sentir-nos duplamente explorados. Em primeiro lugar por vendermos nossa mão-de-obra a empresas cujos acionistas não sabem administrar o dinheiro que ganharam em cima de nossa mais-valia; em segundo lugar, por sermos contribuintes de impostos para o Estado que, por sua vez, está dando (sim, dando) parte de suas reservas, que poderiam estar sendo investidas em educação e saúde, por exemplo, a esses mesmos administradores que provaram sua incapacidade de gestão. Ou seja, a quem serve o Estado? Aos seus cidadãos, ditos detentores do poder, ou aos interesses de uma minoria detentora do capital de produção?

É chegado o momento de rediscutirmos como funciona a economia em que vivemos até mesmo para entendermos qual nosso papel nela e o que podemos fazer para torná-la um modus vivendi mais justo para todos.

Na revista Istoé Dinheiro desta semana, a reportagem de capa traz vários executivos que estão driblando a crise e mostrando que, em alguns setores, ela tem passado longe. Vale a pena dar uma conferida no site.

E para um pouco mais de reflexão quanto ao sistema econômico, sugiro aos visitantes da cozinha que assistam esse vídeo muito interessante realizado por uma pesquisadora dos Estados Unidos: A história das coisas (parte 1/parte 2)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sinais, ondas e outras recepções

Não me sai nada. Afora, os carros-forte movimentam o dinheiro dos bancos, as ambulâncias cortam a cidade, os guardas tentam controlar o tráfego com seus apitos insistentes. Uma pena não poderem controlar o pensamento das gentes que passam de um lado para outro, todas com seus afazeres, todas apressadas, todas contra o tempo. Inutilmente contra o tempo. Inutilmente apressadas. Inutilmente pensantes.

Não me sai nada, apenas me chegam movimentos de uma cidade em constante atrito.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Despojos

Vou me converter.
Raspar o cabelo,
vestir branco,
usar sandálias.

Entrarei para um mosteiro,
devotarei minha vida a um deus,
acordarei cedo para as preces matutinas.

Lavrarei a terra,
batizar-me-ei.
Jejuarei ao longo dos dias,
alimentar-me-ei ao pôr-do-sol.

Agradecerei e louvarei
pelas flores e pelos grãos,
pelo calor e pela chuva,
pelo ocaso e pela aurora,
pelo fogo e pelo ar.

E assim, envolto em
simplicidade e equilíbrio
viverei
com o pouco que me basta.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Um dia perfeito de trabalho

O relógio marcava a aurora ainda não vista. Os olhos cerrados e a boca aberta para auxiliar a respiração não testemunhavam esse breve e fugaz momento em que somos brindados com uma nova manhã; quiçá com uma nova esperança, como se num passe de mágica o dia anterior tivesse se tornado apenas um a mais.

O despertador mecanicamente desprendia seu ruído: eram as primeiras palavras de bom dia que acudiam a seus ouvidos cansados de não escutar. Passara o fim de semana em um sítio e ficara deveras enfadado por descobrir que sabia distinguir os sons dos diferentes motores e, apesar de concordar que era belo o canto dos pássaros, comparava-o a uma orquestra polifônica descompassada.

Seguiam-se as saudações da cafeteira, da sanduicheira e da televisão com as notícias frescas do dia, mais frescas que o pão que comia. Ao entrar no banheiro para a última tentativa de dar ao corpo o ânimo que há um certo tempo perdera no meio do ar enfumaçado e translúcido da cidade, uma redenção: era feriado.

Sinos dobraram nos registros da ducha e os ralos pareciam gritar o aleluia.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Lobo do mar


Sentir soprar o vento
Eriçar as velas brancas
Sem pressa, sem tormento
Ao sabor das brisas mansas

Lançar prancha a cada porto
Sabendo-se feito todo de ar
Viver como marinheiro torto
Sem pátria, nação ou lar

Ver e disfrutar cada beleza
Tocar, sentir e provar
Contudo sem a certeza
De dois braços para onde voltar

Solitária é a vida do homem
Lobo criado no mar
Dorme à noite sem que sonhe
Com pátria, nação ou lar

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Ode à futura São Paulo

Não.
São apenas nomes Ipiranga e São João.
Bresser. Saúde! Sumaré, Consolação.
Não.
Não é daqui meu coração.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Permita-me

Permita-me lançar-te meu olhar felino
E com meus olhos famintos invadir-te o corpo
Afrouxar-te os músculos
Fazer pulsar-te lépido o coração.

Permita-me odiar-te
E com minhas garras afiadas
Arranhar-te o ventre
Tornar-te veneno o sangue que te corre
Apodrecer-te as carnes que te revestem.

E assim, na intensidade desse olhar
Saiba eu corpo, unha, ventre, carne.
Permita-me beber-te a vida.
Permita-me amar-te.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Verdades e mentiras

"... não é que a mentira fosse mais natural que a verdade, senão que para ser levada em conta, a mentira empregava sempre o mais verossímil, e isso a tornava mais familiar que a verdade, que por expressar a realidade verdadeira resultava às vezes demasiado singular para ser acreditada".

SAER, Juan José in Responso

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O sol foi ultrapassado

Em 16 de fevereiro de 1871 de Karachi, no Paquistão, na época pertencente à Índia Britânica, um telegrama foi enviado a Londres. Passando de estação em estação retransmissora, chegou a seu destino em 50 minutos. Em comparação, o sol no dia seguinte levaria quatro horas e meia para cobrir a mesma distância de quase 9 mil quilômetros, incitando, assim, um jornalista inglês a relatar esse fato sob a manchete: "O sol foi ultrapassado". A mesma mensagem teria levado semanas para chegar a Londres num navio a vapor.

Agora pense no e-mail.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Mudo: o mundo comeu

Penso. E as sinapses,
nervosas,
que vão de lado a outro
buscam no heteróclito do pensamento
a massa sonora para fazê-lo,
minimamente,
compreensível.
Abro a boca.
O som mudo sai do fundo de meu ser
carcomido, oco,
como um grito que engole a noite.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Relatividades

Você sabe que o tempo é relativo quando duas horas comendo em um restaurante passam mais rápido que meia-hora na academia.