sexta-feira, 25 de julho de 2008

Mais limites

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Ricardo Reis, nos brinda esse belo poema que submeto à apreciação:

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os Deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos Deuses.


Interessante que, também nesses versos, esbarramos com a questão limites e amor, assim como na música do post anterior. Em suas primeiras linhas, o enunciador principal começa uma enumeração de pessoas cujos atos nos são limitantes ou opressores: pessoas que nos odeiam, pessoas que nos invejam; mas não só elas, a lista está ainda incompleta. Aqueles que nos amam também nos põem sob as mesmas condições: nas bem escolhidas palavras de Reis, "não menos nos limita". Eis uma forma de nivelar por cima, assim como em Moi non plus.

Quem odeia, inveja e ama limita, ainda que não na mesma intensidade, ao menos em um mínimo comum aos três. Em uma resposta moi non plus - eu não te amo mais do que você a mim - pode-se pensar, então, que acima desse limite, desse território definido para a ação do amor, está a opressão do amante sob o amado.

Quem ama, deseja. Quem ama quer e espera algo do objeto amado. Quem ama manipula o amado com vistas a sanar a tensão ocorrida pela disjunção entre sujeito (amante) e objeto (amado). Nós, enquanto sujeitos, buscamos incessantemente a conjunção com o objeto desejado. Contudo, esse objeto é também sujeito e está em constante mudança, algo com o que o amor ainda não aprendeu a lidar. A disjunção amante-amado é perene, uma vez que nunca conseguiremos amalgamar o amado e torná-lo totalmente parte de nós. Ainda que tal fato ocorresse, não solucionaria a tensão sujeito-objeto, pois o desejo ressurgiria em busca de um novo objeto, que não o amado, com a finalidade de saciar o impulso humano de sempre mais.

Tal poema é de tamanha genialidade que, ao fim, Ricardo Reis elucida: quem quer pouco, deseja pouco e, por fácil conseguir realizar seu desejo, tudo tem; quem nada quer, pela ausência de desejo, lima em si tensão e disjunção, sendo livre por tal conquista; já quem nada quer nem deseja é um sujeito completo em comunhão consigo, um círculo fechado: a imagem de Deus.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Moi non plus

"Je t'aime
Oh, oui, je t'aime

-Moi non plus"


Estes são os versos do refrão [se se pode chamar refrão] de uma música francesa muito divulgada na época de seu lançamento. Aqueles que já a ouviram, com certeza reconheceram de primeira, já quem não ouviu ou não se lembra, essa música se tornou famosa por ser cantada de uma forma erótica por Jane Birkin, que simula gemidos de prazer sexual, enquanto Serge Gainsbourg simula o macho dominador com sua voz grave e também sussurrante.

A letra, em si, não possui nenhum atrativo ou algo de muito explícito. A relação sexual é tratada através de metáforas tais como "tu és a vaga / e eu a ilha nua" e "eu vou e venho / entre teu quadril". Agora, o mais interessante são justamente os versos que abrem este post.

Em uma tradução adaptada à nossa realidade, diríamos:
"Te amo
Oh, sim, te amo

-Eu também"


Contudo, se traduzíssemos ao pé da letra, teríamos:
"Te amo
Oh, sim, te amo
-Eu não mais"

Entendo que a intenção do compositor, ou da própria língua francesa, seja nivelar o amor de ambos. Um não ama mais que o outro. O amor é contrário apenas em sentido, indo de um para o outro e do outro para o um, mas não em intensidade, sendo iguais no mesmo patamar. Observe que, segundo esta interpretação, o amor é nivelado por cima, por um teto. O eu-lírico, ao dizer que não tem mais amor pela segunda personagem do que ela por si, sutilmente impõe um limite superior ao amor, mantendo-o restrito a esse máximo.

Este pensamento é contrário à percepção de amor que a maioria de nós temos, o do amor infinito e, muitas vezes, incondicional, à imagem do amor divino. Quando dizemos que também amamos a alguém, não estabelecemos nível de intensidade, mas também não há limites. Uma forma de contornarmos este problema seria enunciar: "amo-te na mesma intensidade" ou talvez "amo-te da mesma forma que me amas" [muito mais envolvente que o pífio idem algumas vezes utilizado].

Pertinente ao tema torna-se a pergunta: "tenho limites ao meu amor"?

Florbela Espanca já tem a resposta para si:

"Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!"

E mesmo que o amor seja desfeito, ela contesta:

"Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre
Mais outro e outro ainda, toda a vida!

Que importa que nos vençam desenganos,
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?"