quarta-feira, 17 de junho de 2009

No seu lugar pra ver você chegar

A porta estava destrancada. Não sabia como havia parado ali. Talvez tivesse ouvido um telefone chamar à distância ou então visto alguém assomar à janela do andar superior. Pensando bem, não. Nem fora o ipê carregado de flores amarelas no quintal, nem o balanço que se movia com o vento que o havia chamado. A porta estava destrancada e aquilo lhe parecia um convite. Torceu a maçaneta e sentiu a ráfaga de ar que saiu pela fresta preencher-lhe o corpo, trazendo consigo o cheiro característico da casa. Pôde perceber o perfume de algumas iguarias, duas taças postas ao chão próximas à lareira, uma garrafa de vinho por sobre a mesa de centro. Chamou por alguém. Debalde. A casa estava vazia, parecia-lhe que à noite houvera um jantar. Instintivamente foi em busca de brasas, as quais encontrou, em seu lugar, o carvão cinza e seco. Tampouco as taças exibiam marcas de lábios ávidos ou vestígios carmesinos de uvas. Sensações úmidas vinham da cozinha e, fechando os olhos, poderia imaginar que estava à beira-mar em algum ponto da costa sul da Itália com seu típico cheiro agridoce vindo de terras africanas. Subindo as escadas lentamente, como que para não ser percebido, adentrou o aposento iluminado, com voais nas janelas e tsurus que baloiçavam ao sabor da brisa. A cama desarrumada emitia maviosos cantos de prazer e sono aos quais Ulisses não resistiu. Descalçou-se, sentou-se à beira da cabeceira e sentiu a maciez do colchão. Tirou as meias, pousou o relógio no criado-mudo, desnudou-se. O linho dos lençóis envolvia-o com suavidade, revelando-lhe áreas e pequenos prazeres até então não descobertos. Virou-se de lado, de bruços e finalmente para cima. Deixou-lhe pesar a carne, deixou-se sentir homem, completo e cansado. Era bom estar assim, nu e só neste ambiente tão não seu. Estava ali em essência, tinha consigo o que lhe era genuíno, nada além de suas próprias vontades, de sua própria história e de seu corpo. Não sabe quanto tempo ali ficou, se menos de hora, se hora-e-meia. Levantou-se e, como num rito de batismo, abriu o duche e deixou-se-lhe escorrer a água por todos os poros, lavando-o de sua sina de humano. Largando molhado o piso por trás de si, regressou ao quarto ainda a tempo de ver a marca de seu corpo que se desfazia na cama. Não queria mais aquelas suas estranhas roupas amontoadas em um canto. Passou de largo pela bergère e parou em frente a uma gaveta semi-aberta na cômoda que restava naquele canto do quarto. Abriu-a e serviu-se com uma roupa de baixo, limpa e branca, discreta, assim como ele se esforçava em ser. No andar de baixo, vindo do pequeno corredor, de súbito ouviu um leve ruído. Rapidamente tentou se esconder, alcançar algo com que pudesse se cobrir. Alguém havia chegado? O que diria ao vê-lo assim, tão seu, tão limpo, tão despertencente? Esgueirou-se abaixo pelas escadas e, buscando algum movimento pela sala, foi repentinamente arrebatado pelo cheiro de comida que vinha do coração da casa, da cozinha. Levado até lá por aquele doce Siroco, avançou lentamente em direção à mesa onde pratos e panelas vaporizavam o ar. Por detrás de si viu surgir-lhe o vulto de uma pessoa, que, dando a volta por sua frente, puxou-lhe um banco e fez-lhe o gesto para que se sentasse e estivesse à vontade. A refeição foi servida e nenhuma palavra foi dita. Não se estranharam nem se fizeram perguntas. Afinal, a porta esteve sempre aberta.

4 comentários:

disse...

Que espetáculo de texto. Interessante, instigante, misterioso.

Está inspirado Lex!

Theo disse...

Um atestado de canceriano esse texto. Lindo texto! A descrição da panela vaporizando deu uma sensação muito boa de que você me é familiar.

Manu disse...

Quanta coisa linda percorrendo os cômodos do seu texto! Até fiquei descalça pra sentir a textura do piso.

fabricioooo disse...

Porém há hors concours... rs