segunda-feira, 2 de março de 2009

Pai e filho

Você é meu pai, eu sou seu filho.
Somos amigos.

Você me observa, eu não te entendo.
Você me diz, eu não te ouço.
Você se cala, eu não te quero.
Você é meu pai, eu sou seu filho.
Eu não te entendo, você tenta.
Eu não te ouço, você me mostra.
Eu não te quero, você me ama.
Somos amigos.

Você diz, eu pondero.
Você mostra, eu vejo.
Você aceita, eu tolero.
Você inabalável, eu ruína.
Você é meu pai, eu sou seu filho.
Somos.

E assim sangue, impulso,
carne, vida,
nos reconstruímos.
Timidamente nos damos as mãos.
Você me abraça, eu te abraço.
Você me olha, eu te olho.
Você me quer, eu te amo.

Somos amigos.

Despojos e espólios

O despertador do celular toca. Eram 8h20. Ufa! Hoje é domingo e não precisava se levantar tão cedo assim. Vira para o lado com a certeza de que só acordaria quando seus olhos insistissem em abrir.

Dito e feito. Passadas algumas horas, a coluna, que já não tinha a elasticidade de antes, implorava por um pouco de movimento, sem contar a sede e a bexiga cheia, resultado da noite de exageiros alcoólicos. Levantou-se e se dirigiu à cozinha para tomar seu desjejum e preparar o almoço: lasanha de berinjela e abobrinha ao molho béchamel.

Falando assim, parecia até difícil, mas não. Para o molho bastava manteiga, farinha, leite, tudo na medida certa. O resto era fácil, bem fácil. Só não podia parar de mexer... não podia parar de mexer, fosse a panela, fosse a coluna. Mal esperava que enquanto colocasse uma camada sobre outra de recheio percebesse que dentro de si o movimento era inverso: deitava fora as camadas de sedimentos depositados ao longo dos anos em busca de... quê?

A topada com as ruínas soterradas foi inevitável. O primeiro objeto encontrado foi uma calculadora Olivetti que usava para brincar de Banco e de Loja de Brinquedos. Junto à calculadora os papéis de escritório: notas promissórias, fichas de inscrição, vales, recibos, cheques inutilizados, tudo que era burocrático para os adultos era ciranda para o menino. Desde já demonstrava aptidão para as tarefas administrativas! Seguindo o rastro da fita impressa com contas de mentirinha tão importantes, chegou aos jogos sobre cujos tabuleiros passara meses de férias a se entreter. Já achei! Gritava para o pai quando conseguia localizar no mosaico de figuras aquelas que tinha separadamente na mão. Ou então exibia orgulhoso seu Super Trunfo quando a partida o estava apertando.

Seguindo as ruas do Banco Imobiliário e as casas do Jogo da Vida, caminhava para a mais tenra infância em direção ao seu companheiro de aventuras, que não era o Toddynho e sim o urso de pelúcia que carregava consigo para todos os lugares. Olharam-se, não quiseram nem contiveram as manifestações de saudade e abraçaram-se perplexos. Ambos com a mesma idade: ele tão homem, o urso tão gasto. "Não me esqueça num canto qualquer" - ouviu sairem da boca de Pingo os versos da cantiga de Toquinho. Sentiu-se culpado. Pingo lhe sorriu. Não lhe culpava. Era como acontecia nesse globo imerso no tempo-espaço. Enquanto aquele passa, este se preenche com memórias e mais memórias, das quais algumas se empoleiram sobre outras matando-as. E ele, Pingo, estava fadado ao esquecimento, à substituição, ao soterramento por outros companheiros, outras aventuras, outras emoções.

Como no Teatro Mágico, Pingo abriu-lhe as portas e deixou-o à vontade."Só para loucos", murmurou-lhe ao pé do ouvido.

Naquele momento carrinhos match-box cruzaram por sua frente num grande estampido. Sua Ferrari F40 de controle remoto irrompeu num estardalhaço e estacionou bem em sua frente, convidando-o para uma volta pelos circuitos do Pense Bem. Partiram, em seguida, para as notas musicais de seu primeiro teclado eletrônico e ali o deixou a ouvir as músicas que um dia soubera tocar. Mas, espere! Essa música não vinha da eletrola posta sobre a prateleira da estante? Não era a voz de Harry Belafonte? E esses braços não eram de seu pai que o pegava para deitá-lo ao seu lado no sofá marrom-café da sala? E ali estava Pingo, a observar tudo, sempre do mesmo jeito, com o mesmo olhar de plástico com o qual olhara o menino em seu primeiro Dia das Crianças.

Mergulhado na vertigem daqueles olhos cor de mel, o menino começou a escutar o toque das ligações no celular. Em verdade era o Jogo da Vida que o chamava para o dinheiro ganho no que antes eram apenas nomes do Banco Imobiliário e para a sorte lançada na roleta das obrigações sociais. Era hora de se despedirem. Cada qual de volta ao seu mundo. Um ao da fantasia, onde não se perde nem se ganha; o outro em direção ao futuro.

Talvez não fosse tão fácil quanto montar uma lasanha, ou como escavar ruínas. Isso ainda iria descobrir. A verdade é que ele estava ali: o menino havia-se feito


HOMEM



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domingo, 1 de março de 2009

Onde estava borboleta, que queria ser bruxa perdida entre os elos da vida esperando que outras pétalas também fossem borboletas, ou ao menos esperando que suas asas fossem pétalas para poder se encontrar em um jardim?

Pobre borboleta que não percebia que as pétalas, loucas para voar, só eram capazes de o realizar depois de falecidas.

Alan