terça-feira, 10 de novembro de 2009

O encontro

Despertou momentos antes de o despertador anunciar a aurora. Quem precisa de tal lembrete quando se tem no peito um coração que bate em descompasso tentando acertar em si a passagem das horas? Longas horas opacas que pareciam já não passar. Levantou-se bem leve dos lençóis de linho que protegeram durante a noite os doces e tensos sonhos com o amado, calçou os chinelos e pôs-se em marcha para o lavabo, onde borrifaria nas curvas de seu corpo ainda jovem o viço do aroma das flores do campo. Aquele seria o dia. Indubitavelmente, aquele seria o dia em que ouviria verter da boca de seu amado as palavras de amor com que tanto sonhara. O dia em que vestiria o olhar mais apaixonado, o sorriso mais tenro e se agasalharia com o abraço mais cálido para acalentar o amado. O amado e as esvoaçantes palavras de amor que gotejariam de sua boca como mel de cana-caiana.

Desceu a escada que unia em caracol seus aposentos ao refeitório para saborear o desjejum. Tudo quanto estava posto à mesa trazia-lhe a memória do amado; seus olhos azuis eram claros e límpidos como a água que bebia, os pães levemente tostados assemelhavam-se ao pálido perfumado de sua pele, a geléia tinha consigo o rubro e o açucarado de seus lábios e o guardanapo de tecido o leve toque de suas mãos... Ah, suas mãos! Bastava pensar em sua delineada forma para que os pêlos de seu corpo se eriçassem como a relva ao sopro de uma fagueira brisa matinal. Aquele seria o dia. O dia em que seu amado maestralmente a tocaria e segredaria em quase sinfonia o amor que tinha por si; e ela ouviria os musicais versos através de cada poro seu, compondo, assim, a platéia necessária atenta ao concerto do amado.

Saciado o corpo, pôs-se a colher as mais belas flores do jardim. Queria-as variadas e multicrômicas a trazer a lascívia primaveril para dentro de seu quarto. Cores, formas e odores que, ao cair da noite o véu, testemunhariam caladas a plenitude em que se encontraria sua alma, farta com as leves e aladas palavras do amado. Subiu ao lavabo e pôs-se a encher a banheira com água quente e sais minerais em um ritual puro quase místico. Precisava batizar-se, expurgar de sua carne os pecados do pensamento e preparar-se para um novo existir. Renasceria de seu imo uma mulher formosa cujo coração ritmar-se-ia com a marcação de outro, o qual não deixaria que se esquecesse jamais do compasso.

Passadas as horas matutinas, recheadas pela suaviloqüência de brandos pensamentos, acercava-se o meio-dia e deveria, pois, estar em forma para o convescote. Adornou-se com os tecidos mais belos e puros de seu armário, os quais anunciariam ao olhar do amado a sua chegada e toda a sua disposição em ser-lhe a mais bela, a mais virgem, a mais sua. Tomou a carruagem que lhe esperava e singrou por caminhos irisados de flora campestre até a beira-mar. Deixada ali por seu servo, quedou-se a esperar pela tão sonhada chegada de seu príncipe encantado, aquele que a tiraria do mais profundo sono e lhe amaria com ardor e ternura.

Sentada à uma banqueta, sombrinha em punho a fazer-lhe sombra à alva face, pôs-se a observar o vai-e-vem das pessoas. Procurava reconhecer entre os rostos que transitavam aquele que espelharia, aquele que a faria sentir-se mais ela. Em vão. Distraída, passou a acompanhar o bailar das gaivotas que se embebiam das rajadas de vento quente e desenhavam espirais no ar. O mar, suave em seus movimentos, brindava à areia com espuma e música, enquanto esta a tragava e apreciava. O baloiçar das árvores dava à cena o movimento preciso. Tudo parecia estar ordenado como em uma perfeita orquestra. Tudo parecia estar pleno de si e em conformidade com seu papel na composição daquele ato tão simples e divino.

Não se deu conta da passagem das horas. O sol baixou-se por entre os glaucos montes e, cheia de vida, recolheu seus pertences e regressou à casa. Nada mais se fazia necessário. Amava-se e isso a bastava.

7 comentários:

fabricioooo disse...

Quando se escolhe a sua própria história para compor sua própria história. Quando se escolhe o nome para a mesma história. Qual o caminho mais belo além do que compõe cada segundo de vida? Leco, obrigado pela leitura tão bonita!

Simplesmente Outono disse...

Gosto de estar por aqui onde justamente por isso estou sempre que posso.
Boa semana.

Simplesmente Outono disse...

Relativamente, o todo e o tudo...
É fato de que não há nada de bom para ser lembrado e/ou guardado no que foi supostamente vivido em sua plenitude.
Todavia, fica arduamente estabelecido que:
Esta briga do esquecer completamente não cessa nunca.
Este incômodo nato e cansativo é tão inquietante quanto à peleja.
É notório o quão foi efêmera esta cumplicidade.
Quanto ao título? Certamente uma totalidade que nunca existiu.
Moral dessa história: É um não querer lembrar sabendo quase que aos gritos que jamais será esquecido.
Texto que acabo de postar em minha estação. Te vejo por lá. Com carinho minhas folhas secas pra ti.

Simplesmente Outono disse...

Saudade dos teus olhos sobre minhas letras. Sem dúvida um grande prazer.
Com carinho.
Simplesmente Outono.

fabricioooo disse...

E como seria se assim não tivesse sido?

Raven disse...

Saudades de você! Espero que esteja bem ^^
Beijocas!

Simplesmente Outono disse...

Consegui postar hoje de madrugada em meio à correria das provas. Confesso que não gosto quando sou praticamente obrigada a me afastar do blog, porém não há como fugir disso. Motivo: além das provas na faculdade existem alguns probleminhas particulares. Espero resolvê-lo o quanto antes e da melhor maneira possível. Tentarei arrumar um jeitinho de postar com a mesma freqüência. Algumas pessoas possuem meu e-mail podendo ficar totalmente à vontade em realizar contato.
Com carinho e o devido respeito deste Outono.