quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Todo dia eu faço tudo sempre igual, me sacodo às...

...5h40. Acordo. Vou à cozinha, masco duas folhas de hortelã em jejum para manter um bom hálito ao longo do dia e encaminho-me ao banheiro. Faço minha higiene pessoal, visto minha roupa de ginástica e saio para uma caminhada. 6h00. Ando ao longo da avenida principal de meu bairro, pelo jardim central. São dois quilômetros e meio de ida, dois e meio de volta, em um total de cinco quilômetros. Enquanto me exercito para manter o colesterol HDL acima de 64mg/dl e o total abaixo de 171mg/dl, ouço em meu iPod Nano de 4GB as músicas que vieram nos CDs que acompanham as edições de uma revista de saúde que compro desde o primeiro número. Ajudam a me manter relaxado e influem na distribuição de energia por todos os meus chacras. Musicoterapia, dizem. Li em uma das reportagens dessa revista que quem dorme cedo e acorda cedo reduz em mais de 25% as probabilidades de doenças coronárias e neurológicas. Li também que exercícios regulares mantêm o corpo jovem, como se desacelerassem o tempo. 6h50. De volta à minha casa, tomo 200ml de suco de laranja e abacaxi, que ajudam no combate aos radicais livres, como uma fatia de queijo branco emparedada por dois biscoitos água-e-sal. Tomo um banho frio e rápido, assim colaboro comigo e com o planeta: não gasto muita água, nem energia, além de evitar que a pele envelheça precocemente pelo efeito acumulado do banho quente. 7h30. Assisto aos 40 minutos do telejornal matutino para me informar e assim ter o que conversar com os colegas. 8h10 saio de casa à pé em direção ao meu trabalho aproveitando o curto horário em que os raios ultravioletas solares são transmitidos em estado carmático, período que vai das 8h02 às 8h23. 8h30. Após ter equilibrado minhas energias físicas e espirituais e ter colaborado com a produção de vitamina D, chego à empresa, desejo bom dia às secretárias, tomo as 4 pílulas homeopáticas que me previnem de doenças alérgicas e equilibram as cores da minha aura, leio em média 47 e-mails e dou início às tarefas do dia. 11h40. Desço ao refeitório para o almoço. São duas folhas de alface, três rodelas de tomate, ramos de chicória, agrião e rúcula, pedaços de cenoura, pepino e beterraba, uma colher de sopa de arroz parboilizado e suplemento de fibras, em um total de 457 kcal. São 32 mastigadas antes de ingerir o alimento. Líquidos apenas 30 minutos depois da refeição, para não fermentar junto com a comida e inchar o estômago. Após mais 240 minutos de trabalho, retorno à pé para minha casa, sem antes passar no mercadinho natural para reabastecer minha dispensa com pães integrais, geléias naturais, mel e pílulas de alho. 18h20. Chego ao apartamento, ouço os 3 recados na secretária eletrônica, visto minha sunga de R$ 150,00 e desço à piscina para nadar 500 metros. 20h00. Ligo o computador para ler as 15 notícias diárias sobre saúde e bem-estar no meu RSS feeder, e confiro a fatura de meu cartão de crédito para estar seguro de que debitaram os R$39,90 que pago mensalmente ao site de relacionamentos em que estou cadastrado, onde, em vão, tento achar, dentre as 12.485 possibilidades, o amor da minha vida.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.



A primeira estrofe de Autopsicografia, poema de Fernando Pessoa, traz a voz do texto a falar de seu autor. Esta voz, que conduz o leitor ao longo da obra, revela em seus primeiros versos que o poeta é um fingidor.

Fingir é um processo que envolve a falsidade, ou seja, em termos semióticos, é fazer com que algo pareça ser o que não é. Contudo, a dor sentida é verdadeira ("a dor que deveras sente"), ou seja, ela é e, por isso, não pode ser fingida. O poeta então, para que seja um fingidor, finge não a dor, mas quem a sente. Em outras palavras, o autor outorga à voz-condutora a faculdade de sentir a sua dor genuína de poeta. Como a voz é uma entidade virtual, a dor que lhe é permitida sentir assume também esse traço de virtualidade, passando a ser uma dor "fingida", já que ela parece ser verdadeira, mas não o é.

Os leitores, por sua vez, independente de quem sejam e do grau de envolvimento com o que lêem, se aprazem com a dor lida. No entanto, cabe distinguir dois tipos de leitores: aqueles que se contentam com uma leitura superficial do texto, chamados de leitores de primeiro nível, daqueles que mergulharão fundo no texto e buscarão desvendar o fingimento do poeta, conhecidos por leitores de segundo nível.

Partindo para uma compreensão mais aprofundada do poema, os leitores devem saber distinguir as duas dores, a fingida da sentida, e notar que ambas pertencem à esfera dos autores e não à sua. Todavia, a dor percebida pelos leitores também não pertence ao seu universo ("mas só a que eles não têm") figurando apenas no momento em que as duas entidades do discurso – voz e leitor – entram em sintonia. Neste ponto o leitor, por sentir momentaneamente uma dor que não é sua, também se torna um fingidor. Ele cede às artimanhas do poeta e põe-se apto a fruir o gozo estético da obra.