terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Querida Manu,

Já se foram quase três anos desde que te escrevi sobre o amor. E hoje, mais do que nunca, vi que o amor liberta. Mas não voei, Manu. O medo de bater as asas e de ganhar as alturas foi maior. O medo de queimar as retinas foi maior que a vontade de olhar para o sol. Muitas são as coisas que me mantiveram agrilhoados ao chão. Culpas e remorsos revestem de chumbo minhas asas e hoje me alimento de mágoas que deixei pelo caminho. Não culpo a ninguém, a não ser a mim mesmo. Plantei e colhi. Ao contrário dos louros de César, vim, vi e perdi. Sei que não gostarás de ler estas palavras e, sinceramente, espero que não tarde outros três anos para que venha escrever-te sobre o amor novamente.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Mosaico

Pondo-me a recordá-lo, sua imagem vem como a de um senhor cuja pele e cabelo revelam seu tempo no mundo. Ficava ali, sentado em sua cadeira a ler as notícias do dia ou a distrair-se em criptogramas. Não me lembro se era dado aos discursos, porém sempre me impressionou por seus silêncios. Silêncios que imperavam sobre os colóquios dos encontros semanais, ainda que por vezes fossem acalorados. Quando as opiniões se divergiam, ela, quase sempre assentada na poltrona ao lado da televisão, levantava-se para imprimir mais dramaticidade às suas opiniões. Quando o assunto não o agradava, em poucas palavras era capaz de deixar todos a pensar, levantava-se e retirava-se para o quarto. Mas isso era raro, assim como raras eram as vezes em que o assunto continuava. Taciturno, observava a dinâmica das famílias. Primeiro os filhos, depois os netos. Crescemos todos ali, sob a tutela de seu olhar e sob a guarda de sua sabedoria, que assim era transmitida, nos interstícios de suas não-palavras. Espalhados pelo sofá, os irmãos se davam notícias de outrora; espalhados pelo chão, os netos cuidavam de aprender com os mais velhos o labor de construir-se sobre afeto. Elas organizavam tudo. A filha cuidava não só da casa, cuidava em manter os sofás confortáveis e o lanche sempre saboroso, pois era dessa combinação que alimentávamos nossas almas. A mãe cuidava de todos. Cuidava na certeza que estávamos protegidos e unidos. Cuidava sempre para que o rocambole com açúcar e canela estivesse ao agrado, aromas de família passados no doce segredo das receitas caseiras. De pequenas sensações e pequenos sabores construiu-se minha família. De pequenas memórias ela continua. Os bisnetos estão a chegar e os avós são outros. Nós, os netos, viramos tios e sentar-nos-emos a outros sofás. E, sem perceber, estaremos ensinando aos pequenos espalhados pelo chão como se construírem sobre afeto e sobre sabedorias vindas de outro tempo, tempo que lhes parecerá ter vindo daqueles das fábulas. Tempo e sabedorias que estarão impressos em nossas peles e em nossos cabelos brancos, quando assim for o momento. Todo dia quando acordo e olho o espelho, vejo-o refletido em gestos, olhares e pensamentos. E a vida assim se repete. Ontem ele, hoje nós. Ontem General de Barros Carmo, hoje filhos, netos, bisnetos e os que ainda virão. Ao final a tranquilidade de ver que as pessoas queridas não se perdem, elas têm o dom de se multiplicar em tantos e diversos outros.